‘Dividir para conquistar’: a tática de Belo Sun para avançar na área já fragilizada por Belo Monte
Empresa canadense de mineração de ouro é suspeita de irregularidades e de incitar conflitos comunitários no Rio Xingu. Esta reportagem é uma parceria entre King’s College de Londres e SUMAÚMA
Por Hyury Potter (texto) e João Laet (fotos), Altamira, Pará – 18 Dezembro 2024
Na sala comercial de número 1989 da Rua Madre Teresa de Calcutá, região central de Altamira, Ribeirinhos e Indígenas são recebidos com sorrisos e apertos de mão. Ajuda com “políticas públicas” e “apoio” para projetos comunitários também são oferecidos. Mas essa caridade não ocorre sem segundas intenções, como fazia a religiosa que batiza o logradouro. No local está instalada a sede brasileira da mineradora Belo Sun Mining Corp, empresa com capital canadense que pretende revirar, em 18 anos, 620 milhões de toneladas de terra ancestral na Amazônia paraense – um peso maior que o do morro do Pão de Açúcar – para faturar mais de 60 bilhões de reais com ouro onde hoje há floresta e populações tradicionais. Não é a primeira vez que esses povos têm seus territórios e modos de vida ameaçados. Agora, diante do abandono, da vulnerabilidade e do cansaço das comunidades, a empresa busca avançar com o projeto – em meio a uma guerra de forças desiguais.
Em Altamira, a resistência às grandes obras que ameaçam vidas humanas, mais-que-humanas e o planeta acontece há pelo menos 35 anos. Em fevereiro de 1989 – mesmo número da sede de Belo Sun –, a cidade paraense recebeu o primeiro Encontro dos Povos do Xingu para discutir o impacto de um megaprojeto do governo federal de construção de hidrelétricas na região. É desse evento a famosa imagem da guerreira Tuire Kayapó, que morreu em agosto de 2024, empunhando um facão junto ao rosto do então diretor da Eletronorte, José Antonio Muniz Lopes, um homem ligado ao oligarca José Sarney, na época presidente do Brasil. A Eletronorte era a empresa pública responsável pelo empreendimento.
Três décadas depois, uma das hidrelétricas daquele projeto – Belo Monte – saiu do papel, ao custo de mais de 40 bilhões de reais em quase dez anos de obras. Ela é hoje responsável direta pelo sequestro de 70% das águas da Volta Grande do Xingu, 130 quilômetros de grande biodiversidade, lar de povos Indígenas como os Arara e os Yudjá/Juruna, comunidades Ribeirinhas e camponeses dedicados à agricultura familiar. Após a barragem, viver da pesca tornou-se impossível em algumas regiões, e Beiradeiros enfrentam a escassez e a depressão após terem sido obrigados a se instalar longe do rio. Em períodos de seca, o Xingu, que antes era a “rua” das comunidades, também não é mais navegável. Tampouco há saneamento básico, atendimento escolar e de saúde adequados. Todas as promessas de que “a vida iria melhorar”, feitas pelo governo e pela Norte Energia, concessionária da hidrelétrica, foram submersas como parte da floresta. Os Indígenas Yudjá/Juruna da região costumam dizer que Belo Monte causou o fim do mundo.
É nesse cenário de destruição aliada ao abandono do Estado que Belo Sun planeja construir a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. Caso sua licença ambiental seja aprovada, dois buracos gigantescos, chamados de cavas de mineração, aparecerão onde há hoje áreas da Floresta Amazônica. A vida tradicional dos povos da região será invadida por ruídos de detonadores, tremores de terra, nuvens de poeira, abertura de novas estradas e incessantes caminhões. O projeto pode vir a ser ampliado, já que a empresa detém 83 pedidos de mineração em tramitação na Agência Nacional de Mineração – que se estendem por 145 quilômetros na região da Volta Grande. Sem contar a bacia de rejeitos e o material tóxico usado no processamento do ouro – que poderiam contaminar o já impactado Rio Xingu. Para conseguir aliados nesse projeto, o grupo canadense adota estratégias que acabam dividindo as comunidades locais e aposta nos sorrisos, apertos de mão e na “ajuda” aos povos afetados.
“A gente participa de tudo que tem ali”, reconheceu Maria Auxiliadora Costa, coordenadora de licenciamento de Belo Sun, ao resumir as ações da empresa em localidades onde há interesse direto para a abertura da mina de ouro. Essa participação vai desde “apoio financeiro” em projetos locais até ajuda “junto à prefeitura”. Segundo a representante da mineradora, “às vezes são pessoas que precisam ser inseridas em determinadas políticas públicas”, disse em uma sala climatizada em seu escritório em Altamira, ao lado do diretor Rodrigo Costa, com quem é casada. O casal apresentou a SUMAÚMA, de forma animada, um PowerPoint com informações gerais do projeto. Os sorrisos só cessaram quando assuntos como licenciamento ambiental, compra irregular de terras da reforma agrária e a falta de reconhecimento de povos originários foram citados na conversa.
“O que temos visto na Amazônia é que grupos com investimento estrangeiro buscam dinheiro através de projetos que inicialmente seriam inviáveis, mas que se tornam viáveis após uma série de etapas para obtenção de apoio das comunidades, e uma dessas etapas é o aliciamento de lideranças, às vezes até por meios ilegais”, explica o procurador da República no Amazonas Fernando Soave, que trabalha há quase uma década com ações que envolvem mineradoras e povos originários naquele estado. “Infelizmente, não temos no Brasil uma previsão no Código Penal para o que poderia ser considerada uma forma de corrupção privada.”
O projeto da mina de ouro, que pode ter investimento de cerca de 1 bilhão de reais por parte da empresa canadense, está com o licenciamento ambiental pendente no Ibama, após dez anos de disputas judiciais, conflitos, suspeitas de irregularidades e reviravoltas. A mineradora é acusada pelo Ministério Público Federal de compra irregular de terras, de monitoramento ilegal de moradores e de não escutar as comunidades. Além disso, há indícios de criação ilegal de gado em terras cobiçadas por Belo Sun na Volta Grande, conforme revela SUMAÚMA, e da adoção de estratégias que dividem comunidades para conquistar território. A última reviravolta nesse novelo de problemas refere-se a uma comunidade no caminho de Belo Sun que desistiu de resistir.
A empresa nega as irregularidades (leia mais abaixo).
Da resistência à mesa dos empresários
Em maio de 2013, a construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte já castigava Altamira com o aumento da violência e a especulação imobiliária em decorrência da chegada de mais de 20 mil trabalhadores para as obras das barragens. Segundo dados do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), o número de mortes por 100 mil habitantes no município paraense saltou de 12,5 em 2000 para 133,3 em 2017, quase cinco vezes o que a cidade do Rio de Janeiro registrou no mesmo período.
Nessa época, segundo relato da Defensoria Pública da União e da Defensoria Pública do Estado do Pará, Belo Sun já estava envolvida na compra de áreas de forma irregular na região para viabilizar a mina de ouro. Foi quando as lideranças da aldeia São Francisco, situada na margem direita do Rio Xingu, enviaram uma carta à Funai, atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas, e ao Ministério Público Federal (MPF) pedindo o reconhecimento, como Indígena, do território de 104 hectares por causa de “ameaças de expulsão da região por parte do projeto de mineração Belo Sun”.
O documento afirmava que moradores da aldeia, onde atualmente vivem cerca de 40 Indígenas, foram procurados por “pessoas da empresa [Belo Sun]”. Os representantes disseram que eles teriam que ser “retirados do local” porque a área “fazia parte do projeto” da mineradora.
A carta gerou na Funai um procedimento para avaliar a reivindicação fundiária. Em 2015, o órgão indigenista analisou se o território cumpria os requisitos para se tornar uma Terra Indígena. Servidores foram até a aldeia em 2019 e 2022 para realizar entrevistas e coletar mais informações. Constataram que os “Juruna da Comunidade São Francisco mantêm, de forma vigorosa, uma extensa rede de relações de parentesco e de convívio com seus parentes Juruna da Terra Indígena Paquiçamba e Arara da Terra Indígena Arara da Volta Grande do Xingu”, afirma o documento.
Ainda em 2019, técnicos da Funai solicitaram a criação de um grupo de trabalho para fazer a análise antropológica da aldeia São Francisco, uma exigência para a criação de novas Terras Indígenas. Cinco anos depois, o processo da aldeia segue parado. Mas não sem reviravoltas – que surpreenderam os próprios servidores da Funai e do MPF que acompanhavam o caso.
Em 8 de fevereiro deste ano, Márcio Jardel Feitosa, presidente da Associação Indígena Juruna Kuximã da Aldeia São Francisco, protocolou, na Funai em Altamira, uma carta escrita à mão: “A comunidade não quer mais seguir com a regularização fundiária como Terra Indígena”. O documento explica: “Queremos fortalecer nossa Associação Indígena e nossa relação com os parentes da Volta Grande do Xingu e com os PBAs dos empreendimentos UHE Belo Monte e Belo Sun”. PBAs são os Planos Básicos Ambientais feitos pelas empresas, que preveem contrapartidas quando a atividade provoca dano ambiental e social a comunidades. A carta tem duas páginas, sendo uma com três parágrafos explicando de forma sucinta os novos planos da aldeia e outra com a assinatura de 27 moradores da localidade.
Para Belo Sun, a desistência do reconhecimento da área como Terra Indígena não poderia ter chegado em melhor hora. Três meses antes, em novembro de 2023, a mineradora foi informada de um parecer técnico da Funai afirmando que o licenciamento da mina de ouro teria que aguardar a finalização do processo de criação do território da aldeia São Francisco – o que poderia levar anos. Segundo o ofício do órgão federal, a medida era necessária por causa do plano da empresa de realizar a “remoção da aldeia” e para “a complementação dos estudos para inclusão de todos os grupos Indígenas passíveis de serem impactados pelo empreendimento”, conforme exigência das normas nacionais e internacionais.
A mineradora Belo Sun contestou o parecer da Funai, mas não conseguiu reverter a decisão do órgão. A desistência por parte dos moradores fortalece a viabilidade do projeto aurífero – e pode significar o fim da comunidade no Xingu.
Representantes de Belo Sun afirmaram a SUMAÚMA que não houve nenhum acordo com os moradores da aldeia São Francisco para que eles desistissem do reconhecimento de território Indígena.
O presidente da associação, Jardel, é filho de Francisco, fundador da aldeia, e também assinou a primeira carta – pedindo o reconhecimento Indígena – por temer que Belo Sun expulsasse os moradores do território em 2013. Por mensagem, ele também negou qualquer tipo de acordo prévio com a mineradora. Explicou que a decisão da desistência se deve ao atraso da Funai no reconhecimento do território, além das dificuldades para sobreviver na região. Segundo ele, a iniciativa foi tomada justamente porque a comunidade quer uma “conversa aberta” com a empresa e os órgãos competentes. Ele afirma que o pedido de reconhecimento já vem se arrastando há tempos, sem nenhuma providência para a demarcação, e que por isso o seu povo está aberto a ouvir propostas. “A comunidade cansou de esperar”, ressalta Jardel.
A Funai deverá fazer uma visita à aldeia São Francisco para investigar a súbita mudança de posição e discutir com os moradores as consequências da desistência do processo de criação do território Indígena. “O nosso papel é explicar a eles o que pode acontecer a partir da desistência. Se eles forem removidos para a instalação da mina, tem essa possibilidade de eles perderem contato com os parentes da TI Paquiçamba e com o Rio Xingu, pois não há muita terra sobrando na Volta Grande. Essa proximidade com o rio constitui o próprio ser Juruna”, explica Luis Felipe da Silva, chefe do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Funai em Altamira.
Questionado sobre a demora, Luis Felipe da Silva afirma que, para a criação de novo território Indígena, a Funai precisa produzir um Relatório de Identificação e Delimitação, algo que depende da criação de um grupo de trabalho do órgão indigenista em Brasília. Segundo ele, o grupo ainda não foi criado por conta do alto número de pedidos de reconhecimento territorial Indígena (380 somente em 2013) e também por causa da pandemia de covid-19.
Belo Sun, a segunda Belo Monte
Na sede de Belo Sun em Altamira e em um escritório na região da Vila da Ressaca, no município de Senador José Porfírio, na Volta Grande do Xingu, os representantes da mineradora afirmam atender todos os moradores. Para lideranças Indígenas ouvidas por SUMAÚMA, a história de uma grande empresa que agrada às comunidades para conquistar aliados parece se repetir.
“Belo Sun não abre espaço para discussão com as comunidades, mas sim só com a liderança em si. Mesmo a gente tendo protocolo coletivo de consulta”, critica Bel Juruna, técnica de enfermagem no Distrito Especial Sanitário Indígena (DSEI). Bel, uma das principais lideranças Indígenas femininas no Médio Xingu, conversou com SUMAÚMA na varanda de sua casa, na aldeia Mïratu, na Terra Indígena Paquiçamba, um mês depois de dar à luz seu quinto filho, Aquiles. “Eles [Belo Sun] vêm pra nossa porta, onde já não tem água, onde já está impactado por outro empreendimento [Belo Monte]. Parece que vai ser um extermínio aqui da Volta Grande. Não só do povo, mas de toda a região. Belo Sun é pior do que Belo Monte”, conclui Bel, enquanto embala o caçula na rede.
A falta da obrigatória consulta prévia e informada aos povos Indígenas de terras homologadas e desaldeados, como os da aldeia São Francisco, também é alvo de uma ação civil pública da Defensoria Pública da União e do Ministério Público Federal. Belo Sun afirma que consultou os povos da Volta Grande sobre o projeto de exploração de ouro, mas a Procuradoria da República chamou o trabalho de “coleta de dados primários apenas”, sem cumprir com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil. A consulta citada por Belo Sun foi feita após a emissão da licença prévia, desrespeitando o direito dos povos de “participar verdadeiramente e influir no processo de tomada de decisões”, argumentaram os procuradores, citando uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema.
A falta de transparência nas negociações da empresa com as lideranças das comunidades é apontada por Bel como uma preocupação. Ela participou diretamente da elaboração do protocolo de consulta do povo Juruna, mas diz que ele não está sendo cumprido.
Giliarde Juruna, cacique da aldeia Mïratu, é um dos moradores da Volta Grande que eram contra a instalação da mineradora e que mudou de posicionamento nos últimos meses.“Acho que a gente se preparou. A gente acredita que se vier outro empreendimento, as condicionantes têm que ser cumpridas antes mesmo do empreendimento acontecer, ao contrário do que ocorreu com Belo Monte”, diz o cacique. “Acredito que no início a Belo Sun queria atropelar, não colocou nós dentro, agora nós fomos consultados, ouvidos, e botamos as nossas propostas”, afirma Giliarde, sem querer dar mais detalhes.
O pesquisador Elielson Silva, da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), que estuda o modo de operação da mineradora Belo Sun há sete anos, detalha a estratégia da empresa para avançar sobre o território. “O que elas fazem é dividir [comunidades] para conquistar [território]”, diz. “A violência praticada na Volta Grande é infraestrutural e atinge diversas áreas, desde a tentativa de cooptação de lideranças locais até a pressão contra pesquisadores. Nada disso é aleatório, são táticas de captura”, acrescenta o professor, referindo-se ao discurso da empresa de “desenvolver a região” para obter apoio dos comunitários.
Elielson é pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e esteve entre os cientistas que foram impedidos de realizar um seminário na Universidade Federal do Pará sobre os impactos de Belo Sun na Volta Grande, em novembro de 2017, por causa de um protesto liderado pelo prefeito de Senador José Porfírio, Dirceu Biancardi (PSC) – município onde será instalada a mina, caso o Ibama aprove a licença ambiental.
“Nos trancaram no auditório e gritavam que éramos contra o desenvolvimento da região”, lembra o pesquisador, destacando que esse tipo de intimidação chega de forma ainda mais violenta aos Indígenas e Beiradeiros. “Há casos de moradores contrários ao projeto de mineração que tiveram que sair das comunidades por causa de ameaças”, afirma.
Procurado por email, Dirceu Biancardi não respondeu. Belo Sun não comentou sobre o episódio.
Essa divisão ocorre do mesmo modo na Vila da Ressaca, comunidade Ribeirinha, também chamada de Beiradeira, que vive às margens do Rio Xingu e que, a cerca de 2 quilômetros de distância de uma das minas previstas no projeto da mineradora, será diretamente afetada se Belo Sun for instalada. Ali a mineradora canadense está ganhando mais apoiadores com a estratégia de “ajudar” lideranças.
Cleia Juruna é presidenta da Associação Juruara, formada por Indígenas Juruna e Arara que vivem na Vila da Ressaca. Ela é mais uma liderança que mudou de opinião sobre Belo Sun nos últimos anos. O escritório da organização fica a uma caminhada de cinco minutos de sua casa. O curto trajeto é feito em parte sobre palafitas que estão a poucos centímetros do solo, o suficiente para evitar que os pedestres pisem em pequenas poças de esgoto a céu aberto. Não há saneamento básico.
A associação fica ao lado do escritório de Belo Sun na Vila da Ressaca e foi criada em 2020 com o apoio da mineradora canadense. Ao narrar os impactos de Belo Monte na localidade, Cleia Juruna chama a hidrelétrica de “Belo Monstro”. Da varanda de sua casa, ela cita como a infraestrutura na região onde vivem cerca de 100 famílias é precária e, ironicamente, até água chega a faltar. “Muitas pessoas voltaram para a Vila da Ressaca porque querem a indenização e realocação que a mineradora pode oferecer”, diz Cleia. Ela afirma que hoje estão mais calejados para lidar com grandes corporações, após tantos problemas com a Norte Energia, operadora da hidrelétrica. “Porque agora nós estamos como gato escaldado. Agora não esperamos mais. Agora temos pra onde correr. Se a firma disser que vai fazer alguma coisa, nós sabemos procurar nossos direitos.”
Em entrevista a SUMAÚMA, os representantes da mineradora confirmaram que deram apoio “de infraestrutura” e “legal” para a instalação da associação. Para eles, essas ações são uma forma de “empoderar” as comunidades.
Acadêmicos que pesquisam o impacto de grandes mineradoras na Amazônia discordam. “Estudos mostram que empresas se aproximam das lideranças, oferecendo vantagens, e acabam dividindo as comunidades. O que vemos na prática é que os protocolos de consulta aos povos não são respeitados”, explica Fernanda Bragato, professora da Universidade Vale dos Sinos, do Rio Grande do Sul, que acompanha a defesa jurídica do povo Indígena Mura, no Amazonas, alvo de um projeto de exploração da mineradora Potássio do Brasil – empresa que já foi denunciada na Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos por omitir dos investidores as informações sobre populações Indígenas impactadas pelo projeto, mesmo motivo que levou Belo Sun a ser denunciada na Comissão de Valores Mobiliário de Ontário.
As similaridades entre a mineradora Belo Sun e a Potássio do Brasil não param na forma como estão conseguindo apoiadores dentro de comunidades tradicionais na Amazônia. Ao menos em documentos oficiais, as duas empresas receberam investimento do grupo canadense Forbes & Manhattan – fundo bilionário que capta recursos em bolsas de valores e investe em projetos que podem ser rentáveis.
No entanto, na entrevista que concedeu a SUMAÚMA, Rodrigo Costa, diretor de Belo Sun, disse que “lá atrás a mineradora pertencia ao grupo Forbes & Manhattan, mas que hoje em dia não pertence mais”. Desde maio de 2022 Belo Sun não consta no portfólio de empresas do fundo, mas relatórios apresentados em outubro na Comissão de Valores Mobiliários dos EUA revelam que executivos do fundo bilionário seguem trabalhando para as duas mineradoras.
Procurado por email, o grupo Forbes & Manhattan não se manifestou.
Concessão e compra irregular de terras
Foi nesse cenário e se aproveitando da vulnerabilidade das comunidades da Volta Grande gerada por Belo Monte que a empresa, segundo a Defensoria Pública da União, teria comprado de maneira irregular, entre 2012 e 2016, lotes de um assentamento da reforma agrária criado na década de 1990 para instalar sua sede e abrir “espaço” para a futura mina de ouro. Pelo menos 21 lotes de famílias assentadas no Projeto de Assentamento Ressaca, no município de Senador José Porfírio, foram vendidos para Belo Sun por valores de até 1 milhão de reais, segundo documentos publicados pelo Estadão. Há suspeita de que a transação seja irregular, segundo a Defensoria Pública da União, já que assentados da reforma agrária têm restrições legais para vender suas terras. Esse tipo de manobra em assentamentos da reforma agrária tem sido um padrão de grandes empresas que atuam na Amazônia, caso por exemplo da estadunidense Cargill, em Abaetetuba, e da Vale, em Carajás, conforme revelou SUMAÚMA neste projeto Insustentáveis.
Após a compra de 2.428 hectares na Volta Grande – uma área equivalente a oito vezes o tamanho do bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro –, a mineradora passou a tentar uma permissão do Incra, órgão responsável pela reforma agrária, para minerar em parte do território ocupado por pequenos agricultores. Conseguiu o documento durante o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, que aparelhou a autarquia federal. Assim, em novembro de 2021, o então presidente do Incra, Geraldo José da Camara Ferreira de Melo Filho, assinou com a empresa um contrato de concessão de uso para a “exploração minerária”. Na época, não havia sequer previsão nas regras administrativas da autarquia para esse tipo de concessão. Só um mês depois o governo publicou uma instrução normativa permitindo que empreendimentos de mineração pudessem receber concessão de uso de terras destinadas à reforma agrária. Tudo aconteceu depois de o ex-vice-presidente Hamilton Mourão, general reformado, ter se encontrado com um membro do grupo Forbes & Manhattan e com representantes de Belo Sun, em reuniões no Ministério das Minas e Energia, segundo reportagem da Agência Pública.
A concessão era um desejo antigo do grupo canadense. Servidor do Incra há 18 anos, o técnico em agropecuária Danilo Hoodson chefiou o escritório em Altamira entre 2013 e 2017 e lembra dos insistentes pedidos da mineradora. “Lembro de pelo menos duas oportunidades que representantes da mineradora apareceram com minutas de acordo prontas, já com o meu nome, faltando apenas a minha assinatura. Mas é claro que não assinei.”
“Além de não haver [na época] previsão administrativa para esse tipo de concessão, as contrapartidas da empresa foram bem abaixo do valor da terra”, informa Hoodson.
Poucos meses depois, as Defensorias Públicas da União e do Estado apresentaram uma ação civil pública pedindo a anulação do contrato de concessão de uso das terras por “compra ilegal dos lotes”, monitoramento ilegal dos moradores e também erro no dimensionamento da área impactada pelo projeto de Belo Sun, que seria de 4.131 hectares – e não os 2.428 informados no contrato.
Em 2023, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que abriga o Incra, engrossou o coro dos órgãos investigadores e recomendou ao instituto que anulasse a concessão dada a Belo Sun e revogasse a instrução normativa. Seriam “medidas essenciais para a pacificação e solução dos conflitos na região do PA Ressaca, Gleba Ituna e arredores”. A autarquia, no entanto, ignorou a recomendação e manteve o contrato ativo.
Em 27 de novembro de 2024, a Vara Federal de Altamira determinou a anulação do acordo de concessão feito com Belo Sun, citando que o Incra “modificou a destinação de um bem público”, criando “um precedente no qual a política de reforma agrária fica exposta a pressões sociais e econômicas”.
SUMAÚMA procurou o Incra em dois momentos para comentar sobre o contrato de concessão com Belo Sun. Antes da decisão da Justiça, a autarquia federal respondeu que o contrato “foi firmado em dezembro de 2021, com base nas normas em vigor no âmbito do Incra”. No entanto, a data de assinatura que consta no documento é 26 de novembro, quase um mês antes da mudança da norma que passou a permitir atividades minerárias em áreas de assentamento, como informado anteriormente.
Em 3 de dezembro, SUMAÚMA voltou a questionar o Incra sobre o contrato, que respondeu que ainda não foi intimado sobre a sentença.
Em um comunicado publicado no site da mineradora Belo Sun, sua presidenta, Ayesha Hira, afirmou que está “avaliando as opções legais disponíveis” e que a empresa está “ansiosa para trabalhar com o Incra nos próximos passos”. Ela disse ainda: “Continuamos a trabalhar para beneficiar a região e todas as partes interessadas à medida que procuramos fazer avançar o PVG [Projeto Volta Grande]”.
Apesar da decisão judicial anulando o contrato, o território concedido irregularmente à mineradora segue em conflito. Em junho de 2022, trabalhadores rurais ocuparam parte do terreno cedido para a Belo Sun e criaram um assentamento rural no local. A empresa move uma queixa-crime no Tribunal de Justiça do Pará contra os assentados e também contra ambientalistas e organizações não governamentais por causa dessa ocupação.
SUMAÚMA questionou Belo Sun sobre as acusações, mas a empresa não respondeu. Para a Justiça, entretanto, a mineradora se manifestou em julho de 2022 negando irregularidades na compra dos lotes e na assinatura do contrato com o Incra.
Monitoramento intimidatório
O monitoramento ilegal dos moradores citado na ação é conhecido na Volta Grande. Pesquisadores do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, juntamente com a Universidade do Estado do Maranhão, em 2022, presenciaram como é a “abordagem intimidatória” da empresa de segurança contratada por Belo Sun aos moradores do Projeto de Assentamento Ressaca.
“Durante a pesquisa de campo registrou-se que vigilantes armados vinculados à ‘segurança patrimonial’ fazem rondas contínuas pelos ‘travessões’, impõem regras extralegais, restringem a livre circulação, impedem o acesso a áreas de uso comum e tradicional, adentram de maneira autoritária em lotes sem qualquer vínculo com a mineradora, empreendem abordagens intimidatórias aos transeuntes e se mantêm à espreita, patrulhando a vida social”, diz documento anexado à ação.
O advogado Diogo Cabral, que defende os moradores dos assentamentos que foram processados por Belo Sun, afirma conhecer bem o monitoramento da mineradora. “É comum ver o carro da equipe de segurança da empresa perto dos locais das reuniões. É uma forma de intimidação”, diz Cabral.
Em 24 de setembro, a equipe de SUMAÚMA circulou pela região e não foi abordada, mas, na manhã do dia seguinte, Maria Auxiliadora Costa, coordenadora de licenciamento de Belo Sun, enviou uma mensagem para um integrante local da equipe afirmando que “souberam da passagem de um grupo de jornalistas e que gostariam de conversar sobre o projeto”.
Questionada, Belo Sun negou que faça vigilância sobre os moradores. Rodrigo Costa, diretor da empresa, disse a SUMAÚMA na sede de Altamira que a empresa de segurança é “focada essencialmente em garimpo”, para evitar invasões de mineradores que utilizem maquinário pesado.
Gado ‘enigmático’
Mesmo com todo esse controle da empresa sobre moradores e visitantes da região, um rebanho bovino “apareceu” nas terras concedidas pelo Incra a Belo Sun sem que a mineradora soubesse, segundo discurso oficial. Uma denúncia entregue ao Ibama em maio deste ano informou que havia cerca de mil cabeças de gado no Projeto de Assentamento Ressaca e que o gado seria de fazendas ilegais que foram alvo da operação de desintrusão (expulsão de invasores) da Terra Indígena Ituna/Itatá. Agentes do Ibama foram à Volta Grande no dia 27 de maio, confirmaram a presença dos animais e pediram esclarecimentos à empresa, já que Belo Sun “não possui registro no Sistema Agropecuário do Estado do Pará, o que a impede de ter sobre a sua área rebanho bovino”, segundo documento obtido por SUMAÚMA.
A mineradora enviou uma resposta ao Ibama em 12 de junho, por meio da sua equipe de advocacia, acusando “oportunistas da região de colocar rebanhos bovinos de maneira indevida e sem autorização da empresa” e que a “Belo Sun não tem poder de polícia para remover qualquer pessoa ou animal presente na área”.
A resposta dos advogados da empresa, no entanto, contradiz o que três agentes do Ibama ouviram em 28 de junho. Quando foram pessoalmente à sede da mineradora entregar a notificação do gado, eles conversaram com Maria Auxiliadora Costa, que teria dito aos agentes que havia um contrato de arrendamento permitindo o gado no local. “Ela chegou a procurar o documento na nossa frente, mas não encontrou, e disse que enviaria depois com uma resposta formal da empresa”, relatou Givanildo Lima a SUMAÚMA, um dos agentes do Ibama presentes na fiscalização.
Como a concessão de uso dada pelo Incra é especificamente para exploração minerária, qualquer outro tipo de destinação da terra pode ser alvo de quebra de acordo, como prevê item do contrato sobre os motivos para uma rescisão.
A SUMAÚMA, o diretor Rodrigo Costa e a coordenadora Maria Auxiliadora reforçaram que a empresa não era responsável e não sabia do gado até a notificação do Ibama. Eles afirmam que fizeram “acordos de comodato” para autorizar a permanência de antigos moradores da região, entre 2012 e 2015. Maria Auxiliadora disse ainda que “nada disso vale mais hoje” e que a mineradora não possui nenhum tipo de contrato de arrendamento de gado.
Questionado sobre o gado irregular, o Incra não respondeu.
Em setembro, quando SUMAÚMA esteve na localidade cedida pelo Incra, perto da Vila da Ressaca, o gado tinha sido retirado. Moradores dos assentamentos das redondezas relataram que os animais foram removidos cerca de dois meses antes, logo após a notificação do Ibama à empresa.
Além do gado misterioso, a região de interesse de Belo Sun abriga garimpos que são explorados ilegalmente por moradores da região. SUMAÚMA visitou o Garimpo do Galo, onde o ouro está encravado nas rochas, não misturado na lama superficial. Em vez de grandes barrancos de terra, como os encontrados em algumas Terras Indígenas, há apenas um buraco na rocha, coberto de água.
Para chegar à mina, aberta na década de 1970, foi preciso passar por uma estrada íngreme de pedras e terra, onde se veem várias casas abandonadas. O que os trabalhadores que teimam em ir ao local fazem atualmente é tentar extrair ouro dos rejeitos da exploração feita no passado.
“Dá para tirar 10 gramas por mês por pessoa”, calculam os garimpeiros que conversaram com a reportagem. O grama do ouro no mercado internacional vale 531 reais, mas isso pode variar de acordo com a situação do garimpo. Nenhum deles quis se identificar, pois a exploração é irregular.
O garimpo no Galo está na área onde há um dos processos de mineração que pertencem a Belo Sun. Sem a licença ambiental do Ibama, a empresa canadense não consegue autorização para extrair o minério, mas os garimpeiros contaram que há um acordo verbal com a mineradora, confirmado pelo diretor Rodrigo Costa, para reaproveitamento dos rejeitos sem a utilização de maquinário pesado.
Em 2023, o Ibama e a Polícia Federal realizaram operações no Galo e em outros garimpos da região. Parte do maquinário foi queimada.
Nesses dez anos, diversas ações foram movidas contra Belo Sun nas esferas federal e estadual do Poder Judiciário. Uma das primeiras delas questionou o licenciamento ambiental dado pelo órgão estadual, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará, em 2013. Como afeta Terras Indígenas, o licenciamento deve ser federal, portanto feito pelo Ibama.
As derrotas judiciais de Belo Sun
As idas e vindas de um projeto minerário que, mesmo sem sair do papel, já faz estrago nas comunidades da Volta Grande do Xingu
2012
A mineradora canadense Belo Sun solicita licenciamento ambiental para a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará para perfurar a região da Volta Grande do Xingu e abrir a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil
2013/Mai
Indígenas da aldeia São Francisco, que vivem na região cobiçada, enviam carta à Funai pedindo reconhecimento da área como território Indígena – para evitar que sejam retirados do local
2013/Dez
A Secretaria de Meio Ambiente do Pará concede a licença prévia (primeira etapa do licenciamento ambiental) a Belo Sun
2014/Jun
A Justiça Federal suspende a licença prévia e ordena a realização da consulta aos Indígenas afetados, a pedido do MPF
2014/Ago
O MPF apresenta ação civil pública pedindo que o licenciamento ambiental não seja dado pelo órgão estadual (Semas), mas pelo federal (Ibama)
2017
A Semas concede licença de instalação a Belo Sun, mas a Justiça Federal suspende a autorização
2018/Abr
Belo Sun é denunciada na ONU por organizações de Direitos Humanos, que afirmam que moradores e ambientalistas opositores foram ameaçados
2018/Set
Juiz federal acata pedido do MPF e suspende todas as atividades da mineradora Belo Sun até que o licenciamento ambiental seja concedido pelo Ibama
2020/Fev
A mineradora apresenta estudos de impactos sociais e ambientais da mina nas Terras Indígenas Paquiçamba, Arara da Volta Grande do Xingu e Ituna/Itatá. Estudos solicitados pelos Juruna não foram realizados
2021/Nov
O presidente do Incra assina contrato de concessão de uso de área de 2.428 hectares dentro de assentamento da reforma agrária para Belo Sun realizar “exploração minerária” – mesmo sem haver previsão normativa para isso
2021/Dez
O Incra publica instrução normativa adicionando “empreendimentos minerários” entre os projetos aptos a serem contemplados com concessão de uso de áreas destinadas à reforma agrária. Surgem indícios de que Belo Sun teria comprado terrenos de forma irregular na região entre 2012 e 2016
2022/Abr
A Defensoria Pública ajuíza ação pedindo a anulação do contrato com o Incra
2022/Mai
A Justiça Estadual de Altamira suspende o licenciamento ambiental da mineradora pela Semas até que seja realizado estudo socioambiental dos Ribeirinhos na região
2023/Set
O TRF-1 decide que o licenciamento ambiental da mina é de responsabilidade federal (Ibama), anulando licenças emitidas pela Semas
2023/Out
A Funai informa à mineradora que o licenciamento da mina deve aguardar o fim do processo de reconhecimento da aldeia São Francisco como território Indígena – o que pode levar anos
2024/Fev
Lideranças da aldeia São Francisco protocolam na Funai uma carta informando que “a comunidade não quer mais seguir com a regularização fundiária como Terra Indígena” porque querem “fortalecer” as relações com o “empreendimento Belo Sun”
2024/Nov
A Vara Federal de Altamira anula acordo de concessão minerária feito entre o Incra e Belo Sun, citando que o órgão federal “modificou a destinação de um bem público”
Arraste para o lado
Fontes: Funai, DPU, MPF, Xingu Vivo, Conectas, Ibama, Semas TJPA e Justiça FederalEm 2023, o TRF-1 confirmou que quem deve licenciar o empreendimento é o Ibama, cuja avaliação segue pendente.
Procurada, a Secretaria de Meio Ambiente do Pará não se manifestou.
Enquanto esperam pelo governo federal, representantes de Belo Sun seguem recebendo os povos da Volta Grande nas salas climatizadas em Altamira e na Vila da Ressaca.
Uma das poucas vozes que ainda resistem aos encantos da sala climatizada da mineradora Belo Sun, Bel Juruna afirma preferir pensar no filho que tem o sono embalado na rede na varanda da sua casa a imaginar o dinheiro que o ouro pode trazer. “Tudo acaba. Os bens materiais acabam, o dinheiro acaba. Então, essa tomada de decisão está em nós hoje de garantir o futuro dessas crianças das próximas gerações”, diz.
Diel Juruna, de 32 anos, vice-liderança da aldeia Mïratu, teme pelo futuro de seu povo. Os Juruna são também conhecidos como povo Yudjá, palavra que significa “os donos do rio”. Se Belo Monte trouxe o fim do mundo, a luta agora é para evitar um novo fim do mundo. “Se nós não tomarmos providências, daqui a uns anos nossos filhos e netos não vão saber mais qual é a cultura do nosso povo”, diz. O Xingu é Yudjá. E os Yudjá são o Xingu. Mas as águas já começam a secar.
Duas empresas, mesma história: o legado de Belo Monte
Comunidades extintas, beiradeiros na ‘quentura’ da cidade, acordos descumpridos. O que a história pode ensinar aos moradores da Volta Grande do Xingu?
Por Hyury Potter (texto) e João Laet (fotos), de Altamira
Se a aldeia São Francisco optar por negociar com Belo Sun e terminar saindo da Volta Grande, não seria a primeira vez que Beiradeiros perderiam contato com o Rio Xingu, tão fundamental para seu modo de vida.
Pelo menos 260 famílias ribeirinhas foram removidas de suas casas por conta da hidrelétrica de Belo Monte e foram obrigadas a viver longe do rio que lhes dava vida – e paz. Hoje, muitos deles estão vivendo nas cidades da região.
Ainda em 2012, as 67 famílias da Vila Santo Antônio foram as primeiras a passar por esse trauma da remoção de suas residências. Elio Alves da Silva, 69 anos, foi presidente da associação de pescadores da comunidade e conta que, ao invés de propor uma solução conjunta para toda a comunidade, a concessionária de Belo Monte optou por negociações individuais – o que acabou causando uma divisão entre os moradores. “Te davam o dinheiro e a família tinha 24 horas para sair do local. Muitos aceitaram e hoje quase todos os antigos moradores da vila vivem em locais diferentes. A comunidade acabou”, lamenta Élio Silva. “O dinheiro era pouco, mas a gente não se importava porque tinha alegria na vila”, diz ele, que hoje vive da aposentadoria e da pesca em um lago artificial em Altamira para ter uma renda extra. Dos antigos colegas de pescaria, ele afirma que muitos entraram em depressão após a vida forçada longe do Rio.
Quem conseguiu permanecer perto do Rio Xingu passou a ter a “vida mais difícil” mencionada por Jardel, da aldeia São Francisco. Quase não há mais peixes para comer e muitos deles estão nascendo com deformações. Áreas que antes eram berçários se tornaram cemitérios de ovas. Até mesmo os peixes ornamentais, que os Beiradeiros vendiam como modo de subsistência, reduziram. Além do impacto nos animais aquáticos, a alteração nos índices hidrológicos do Xingu trouxe outro problema aos povos da Volta Grande: a falta de mobilidade. Se antes os Indígenas das aldeias da TI Trincheira-Bacajá demoravam seis horas de barco para ir até a cidade, hoje, com o rio seco, a viagem se tornou impraticável, há muitos pedrais no trajeto.
As estradas viraram a opção mais viável, mas para isso eles precisam de combustível, que é fornecido pela Norte Energia – empresa privada dona da concessão da usina hidrelétrica de Belo Monte. Desde 2015, a concessionária concede cotas de combustível para aldeias da região da Volta Grande, fruto de um acordo feito com os povos, que previu o benefício até 2045.
Mas, em setembro, os povos Indígenas da Volta Grande foram surpreendidos com um comunicado da Norte Energia encerrando o fornecimento de combustível. Protestos dos povos Xikrin, Arara e Yudjá-Juruna bloquearam a rodovia Transamazônica e a avenida que dá acesso ao aeroporto de Altamira. Também ocuparam a sede da Funai por alguns dias.
“O Rio Bacajá, que a gente usava para se locomover, está morto”, explica Kataprore Xikrin, liderança da aldeia Mrotidjãm e presidenta da Associação Bebô Xikrin do Bacajá (Abex). Kataprore ajudou na tradução da entrevista de Nhakmaiti Xikrin. Sempre com um facão em mãos, a guerreira de semblante determinado não se deixou intimidar pelos representantes da Norte Energia na reunião por videoconferência na sede da Funai em Altamira. Em língua Mebêngôkre, se postou de pé no auditório e reclamou do descaso da empresa com o seu povo. No dia seguinte, estava firme no sol amazônico de Altamira durante as manifestações contra a empresa. “Nós temos direito a exigir o que nos tiraram. Essa é a minha luta”, afirmou durante o bloqueio do acesso ao aeroporto.
Em nota enviada por email, a Norte Energia informou que o fornecimento de combustível “foi discutido e resolvido durante reunião recente, em Altamira, com as lideranças indígenas, Funai, Ministério de Povos Indígenas e Ministério Público Federal”. A nota não cita o resultado da reunião, mas fontes na Funai informaram que o abastecimento deve seguir por apenas mais dois anos.
A antropóloga Thais Mantovanelli, analista do Instituto Socioambiental, acompanhou os protestos e notou que a concessionária instalou grades de ferro na frente da sede da empresa em Altamira dois dias antes das manifestações. A atitude, lembra a antropóloga, é bem diferente daquela que a empresa tomou em 2015, ano da emissão da licença de operação. “Durante as obras, a Norte Energia fez diversos acordos paralelos com os Indígenas, eles tinham um espaço na sede só para atendê-los. Era como um balcão de negócios. Hoje você não consegue entrar lá”, lembra Mantovanelli. Quando os protestos passaram, a empresa retirou as grades.